Sorte de Varas
A possibilidade da ALRA legislar sobre touradas e tradições tauromáquicas em virtude do novo Estatuto Político Administrativo, desencadeou um interessante debate nos Açores e em especial na Ilha Terceira. Um debate que se quer saudável e que já conheceu pontos de vista extremamente cuidados e bem fundamentados do ponto de vista técnico. Também, já foram os momentos em que este debate foi menos produtivo, roçando o vulgar e o desinteressante. Tentarei que a minha humilde opinião não entre na rota da segunda vertente.
Como em todos os debates, há um lado melhor preparado, mais dinâmico e com maior prestígio, não tenhamos dúvidas, este lado é o favorável à sorte de varas. Principalmente, porque este tipo de movimento, mesmo antes de conhecer a luz do debate público é muito bem preparado nos bastidores para as circunstâncias futuras. Finalmente, o lado favorável à Sorte de Varas é composto por personalidades de destaque da sociedade terceirense e açoriana – muitas delas, tomo como exemplo -, pelo que a opinião de um simples jovem como eu poderá não ter o prestígio destas, assim, serão apenas umas modestas linhas de reflexão. Serão longas as minhas linhas, mas este debate merece toda a atenção e pormenor possível, aliás, seria necessária outra profundidade sobre o tema. Dividirei a minha opinião em áreas temáticas, pois a possível introdução da sorte de varas terá um impacto muito além da Praça de Toiros.
Espaço
Antes de mais, é necessário definir o espaço no qual a Sorte de Varas poderá a vir a ser praticada. Os discursos e argumentos dos prós, têm nesta área uma das suas maiores falhas. Alguns, sustentam que a prática deve acontecer apenas na Terceira, pelo que o debate será essencialmente na Ilha de Jesus Cristo, acrescentam ainda, que não faz qualquer sentido uma discussão regional e implementação regional. Outros acrescentam que a Sorte de Varas deve ser implementada em todas as ilhas do arquipélago que tenham manifestações tauromáquicas.
Esta indefinição do espaço, não revela apenas descoordenação das reais intenções, mas também da ausência de um substrato social, histórico e cultural. Pois, se formos a ver a envolvência tauromáquica de cada ilha, é notório que a Ilha Terceira é aquela que tem maior tradição e culto ao toiro. O que é diferenciado, pois gostar de touradas é completamente diferente de aceitar a Sorte de Varas. Um debate regional e a ausência da cultura do toiro em muitas ilhas seria um entrave à legalização da Sorte de Varas, dai a facção que sustenta que o debate deve acontecer essencialmente na Terceira. No entanto, outro reparo, não havendo suporte histórico e assim tradicional da Sorte de Varas na Ilha Terceira e baseando o debate na arte do toureiro e da necessidade do primeiro tércio para a excelência de uma corrida – como tem vindo a acontecer -, esta extrapolação pode ser feita para todas as restantes ilhas do arquipélago. Caso estivéssemos a falar de uma tradição da Ilha Terceira, defenderia um debate essencialmente na ilha, não o sendo, entendo ser imperativo que o debate deve acontecer no panorama regional.
Direitos dos Animais
Os Açores são tidos no mundo não só como um paraíso ambiental e ecológico, mas também como um local de protecção dos direitos do animal. As referências positivas e elogiosas da Greenpeace e da National Geographic Travel são exemplo dessa projecção internacional, da qual se consegue retirar evidentes ganhos económicos e turísticos devido à atenção que os norte-europeus seguem estas referências – não será demais dizer que o segmento que mais tem contribuído para o turismo da região não é afecto às touradas.
Caricato ou paradoxal, a ilha que orgulha-se de ter uma cidade Património Mundial da Unesco e que cansa-se de referir a importância do título UNESCO, esqueça a Declaração dos Direitos dos Animais, aprovada em Outubro de 1978 pela UNESCO. Com todo o respeito, entendo como intelectualmente desonesto a cidade Património Mundial da UNESCO violar Declarações da UNESCO, assim como, esquecer todos os ganhos e projecção que a UNESCO deu a esta ilha, tentando-lhe dar literalmente uma facada nas costas.
No plano europeu, o Tratado de Amesterdão foi anexo um protocolo que garante o respeito pelas tradições tauromáquicas dos Estados Membros, ora, gostaria de perceber que enquadramento tem a inovação da Sorte de Varas nos Açores no prisma europeu, dado que não se trata de uma tradição.
Não gastarei linhas na posição do Direito nacional, dado que a posição do legislador nacional é a de proibição da Sorte de Varas, posição desde a Monarquia com D. Maria II, até à Terceira República.
História, Cultura e Sociedade
A Ilha Terceira sendo a ilha mais taurina do mundo, possui desde os seus primórdios uma forte ligação à tauromaquia. A paixão pelo toiro atinge o seu auge na Tourada à Corda. A afficion terceirense demarca-se mundialmente pelo respeito que tem pelos toiros, ainda quando aconteciam Sortes de Varas, na Praça de Toiros de Angra do Heroísmo era muito frequente ouvirem-se assobios e fortes protestos. Diria que sempre que a Praça de Toiros da ilha foi palco de Sorte de Varas houve protestos. Acrescente-se, que foram ainda muitos mais aqueles que deixaram de frequentar a Praça de Toiros devido à prática.
Os terceirenses vêem os toiros de forma diferente do que os espanhóis - de onde se tenta importar tradições e a Sorte de Varas e de outros pontos taurinos do mundo. Os terceirenses que correm para ver os toiros, sentem uma atracção natural, em alguns casos de verdadeiro amor e admiração, não suportam ver o toiro mal tratado. Mesmo em touradas à corda, quando sai da gaiola um toiro magoado ou com sangue à vista - mesmo pequenos cortes no focinho ou no lombo - o povo não gosta, da mesma forma que não gosta ver um toiro caído no arraial ou com dificuldades respiratórias ou de locomoção. Em termos sociais, os terceirenses preferem os toiros saudáveis, fortes e bonitos, não gostam do toiro fragilizado.
A Terceira, também, demarca-se pela forma como transformou uma tradição originalmente de elites numa festa popular e de família. Ir a uma tourada à corda ou ir a uma tourada de praça é um dos tempos livres de excelência das famílias terceirenses, ora a implementação da Sorte de Varas iria destruir este vínculo família/tourada, não serão muitos os país que levarão os filhos a uma tourada de praça, para os miúdos verem a picar o toiro – até porque posteriormente terá que acontecer interdições aos mais pequenos. Isto, poderá no futuro acarretar uma diminuição da afficion terceirense a médio prazo, os miúdos correm para verem toiros, brincam aos toiros em todas as ruas da Terceira, cortar esta ligação às gerações mais novas terá impacto no futuro.
A magia da tourada na Terceira tem o seu fundamento na não-violência para com o animal, colocando o Homem em pé de igualdade com o toiro. Retirar esta igualdade entre intervenientes é agredir a velha magia da tourada, o Homem a desafiar a besta.
Voltando à excelência da Tourada à Corda, a inexistência de barreiras violentas neste espectáculo motivou durante décadas a sensibilização de toda uma população para com o toiro. O brio da Tourada à Corda é a singularidade de ser um espectáculo taurino para toda a família, não havendo constrangimentos do mais novo ao mais velho. Não só pelo carácter local, mas em muito pela simplicidade e respeito pelo animal. Veja-se o caso da exportação da Tourada à Corda para outros destinos, que tem acontecido nos últimos tempos em outras ilhas do arquipélago, na Europa e na América do Norte. Saliente-se que ao contrário da tourada de praça que ano após ano perde aficionados, a tourada à Corda ano após ano ganha aficionados. Prefiro ver a Terceira ligada à tourada à corda como exemplo do respeito e pelo culto ao toiro. Note-se também, que outra via de exportação tem sido os dvds e os vídeos on-line, note-se que os vídeos das famosas marradas terceirenses conseguem cativar o amante de toiros como destruir barreiras dos menos receptivos. Quem nunca conheceu um amigo que não gostava de touradas, mas que depois de ver umas marradas passou a gostar? Muitos são aqueles que colam touradas a violência, ora a Terceira tem trilhado pelo caminho oposto, o de afirmar-se pela tradição taurina sem violência, ou pelo menos, com o mínimo possível em virtude da sua raiz histórico-cultural.
A Sorte de Varas, não é tradição local, pouco mais de uma década se assistiu a esta prática na Terceira. Talvez, por não ser tradição local teve sempre grande contestação na ilha. Importa também, discutir a forma como a Sorte de Varas poderá influenciar a expansão da tradição terceirense a outras ilhas e até mesmo ao mercado turístico, creio que seja factor de mais pontos negativos do que positivos – veremos adiante.
Não creio que os terceirenses estejam receptivos à Sorte de Varas, em muito por toda a envolvente histórica e social, certamente, caso a Sorte de Varas se torne legal, o público de Toiros de Praça irá diminuir, como de resto aconteceu no passado. Se não diminuir, pelo menos os terceirenses deixarão de ir à Praça de Toiros da Cidade Património Mundial com o mesmo brilho nos olhos.
Extrapolando para o prisma regional, a argumentação é simples, se na Terceira não há substrato social e cultural de apoio à Sorte de Varas, ainda menos há nas restantes oito ilhas. Nota final, para um esclarecimento, o movimento que pede a introdução da Sorte de Varas, não é um movimento com substrato popular ou com larga abrangência, limita-se a uma elite a um pequeno grupo de aficionados. Diferente do que aconteceu em Barrancos onde havia um grande desejo de grande parte da população. Se formos a comparar os dois movimentos percebemos que em Barrancos havia o tal substrato histórico, social e cultural, toda a vila palpitava quando se falava no assunto, ora na Terceira isto não acontece.
Economia e Turismo
Sempre que se fala em touradas fala-se no seu impacto económico e turístico. No entanto, numa primeira análise, debruçar-me-ei sobre a economia interna da ilha e posteriormente à possibilidade de incrementos externos.
No plano interno, o dos terceirenses, em bom rigor, a introdução da Sorte de Varas não irá traduzir-se num aumento de procura de bilhetes para as touradas. Ou seja, a primeira questão é simples, com a introdução da Sorte de Varas passarão a ir mais terceirenses à Praça de Toiros? A resposta é negativa, não passarão a ir mais terceirenses. Isto porque, para acontecer o contrário teríamos que partir do pressuposto que há terceirenses que não vão a toiros de Praça porque não se pratica Sorte de Varas, ora este cenário é inexistente. Ao invés, serão menos os terceirenses a irem à Praça de Toiros, dado que não concordam com a prática. No entanto, há que entender duas externalidades, com a introdução da Sorte de Varas, diz-se que seria possível a vinda de melhores carteis e ai levar mais gente à Praça de Toiros, no entanto, as perdas relativas à introdução da prática serão sempre maiores que os novos espectadores. Em muito, devido ao pendor social referido anteriormente, também porque, mesmo em localidades com forte matriz tauromáquica, o exemplo de Espanha é paradigmático, houvesse cada vez mais vozes contra a Sorte de Varas. Outra externalidade, a Sorte de Varas iria impedir a ida de crianças à Praça de Toiros, ora, menos seriam os potenciais espectadores por evidentes motivos.
Passando para o plano externo, a viabilidade e os incrementos económicos da Sorte de Varas teriam que passar forçosamente pela vinda de aficionados exteriores à ilha. Ora, o mercado na região é pequeno, teria que ser o mercado nacional e internacional o nosso alvo. Ao mercado nacional, seria sempre muito mais apelativo e económico uma ida à vizinha Espanha, já o eixo da américa-latina pelos custos das viagens e transbordos nunca será um público-alvo. Restam os espanhóis como público-alvo, algo que seria difícil de ultrapassar pelos custos e transbordos até chegarem cá, ainda para mais quando têm no seu próprio território um périplo de praças nas quais se praticam Sorte de Varas. Coloquemo-nos na pele de um espanhol, viajarei até à Terceira para assistir a um espectáculo que posso assistir aqui?
Ora, esta definição do público-alvo, lança-nos para outra questão ainda mais polémica, os toiros de morte. Alguns, apoiantes da Sorte de Varas já demonstraram intenção de também ser possíveis os toiros de morte na Terceira. Quando se fala em turismo e em público alvo, é desonesto separar as coisas, ou seja, os aficionados espanhóis passariam a vir à Terceira se praticasse-mos a Sorte de Varas, quando têm lá corrida integral – Sorte de Varas e morte do toiro na arena? Obviamente que não. Isto lança-nos para outro ponto – a sombra dos Toiros de Morte.
Ainda no prisma turístico, importa salientar que a imagem dos Açores e da Ilha Terceira em termos internacionais tem sido a de paraíso ambiental, de respeito pela fauna e flora, algo que contrasta com a Sorte de Varas, estaríamos a colocar em causa toda uma imagem que tem dado frutos. Também, o público-alvo do actual turismo açoriano e terceirense são os nórdicos, povo que não é afecto a touradas e que poderá resultar em quebras neste nicho de mercado.
Nota final para os galardoes que os Açores e a Terceira têm recebido recentemente de prestigiados organismos e associações internacionais, prémios estes que permitem uma visibilidade que nenhuma campanha realizada por nós consegue. Não será demais dizer que muitos destes prémios não pactuam com a Sorte de Varas.
Ciências Veterinárias
Não debruçar-me-ei sobre esta temática, primeiro porque conheço os meus limites e quando me movo em terreno que desconheço, em segundo, porque aqui devem intervir apenas e somente os técnicos e especialistas na área.
Gostaria apenas de frisar algumas barbaridades como se tem dito que o toiro não sente nada, ou não sente dor e que até o toiro sente menos dor com a Sorte de Varas. Eu regendo-me apenas pelo censo comum pergunto: Se o toiro não sente nada, porque é que investe? Porque é que alguns fogem e outros deitam-se? Querem fazer-me crer que a Sorte de varas tem apenas impacto visual? Não me tomem por estúpido.
A sombra dos Toiros de Morte
Sinceramente, para mim qualquer tentativa de total separação do debate da Sorte de Varas dos Toiros de Morte é intelectualmente desonesta. Primeiro, porque já foram muitos os que já falaram na possibilidade de toiros de morte entrar também em debate. Outros, prevendo a dificuldade preferem por agora debater a Sorte de Varas e posteriormente os Toiros de Morte, tudo para não ser demasiado forte.
Verdade seja dita que os objectivos descritos pelo lado a favor da Sorte de Varas nunca irão acontecer sem Toiros de Morte. Quando se diz que se vai trazer melhores cartéis e mais turistas para verem toiros, isto não é inerente à Sorte de Varas única e simplesmente. Voltemos ao caso já referido anteriormente, irá um matador recusar uma tourada em Espanha para vir à Terceira? Trocará um aficionado Espanhol uma tourada integral em Espanha para vir à Terceira ver a Sorte de Varas? Refira-se que este tipo de turismo comporta grandes quantias e demasiados transtornos em viagens, só as elites dos aficionados terão dinheiro para vir cá e não vão gastar umas belas notas para ver apenas a Sorte de Varas. Mais uma vez, é desonesto falar-se destes objectivos apenas pela Sorte de Varas, até porque há implícita a vontade da prática de Toiros de Morte por algumas franjas de aficionados.
Sejam honestos e no debate da Sorte de Varas tornem público a posição sobre Toiros de Morte e se pretendem ou não a sua introdução.
Nota final
Neste sentido, a minha posição é irredutivelmente contrária à inclusão do primeiro tércio nas Touradas de Praça da Ilha Terceira e Açores. Concentrei-me nos micro aspectos da questão terceirense e açoriana, descurando os argumentos em sede de Direitos dos Animais, no entanto, as posições de associações da área tem realizado um excelente trabalho e em todo este debate. Senti apenas a necessidade de fazer transparecer argumentos de outra índole e característicos da Terceira e Açores, que devem imperativamente entrar em debate e que são desconhecidos de alguns que são alheios à Terceira e Açores.
Vila das Lajes, Ilha Terceira, 10 de Abril de 2009
Tibério Dinis
Fonte:http://inconcreto.blogspot.com/2009/04/sorte-de-varas.html