sábado, 21 de março de 2009

O Especismo e a evidência científica de sofrimento


Texto de: Hugo Evangelista – Biólogo

Uma das principais razões que tem levado milhões de pessoas em todo o mundo a optar por uma alimentação vegetariana é sem dúvida o respeito pelos animais, ou por outras palavras, o imperativo moral em não promover a exploração e o sofrimento desnecessário inerente à criação de animais para alimentação.

Estes argumentos sentem uma grande resistência na sociedade ocidental em que vivemos, por nela imperar uma filosofia antropocêntrica (por vezes auto-denominada como humanista), que é necessariamente especista por atribuir mais ou menos direitos a um indivíduo consoante a espécie a que este pertence, uma característica tão irrelevante como o sexo ou a cor da pele, e não consoante as características desse indivíduo relacionadas com o seu interesse em ter determinado direito.

O argumento desta visão é o de que o sofrimento dos animais, mesmo não sendo desejável, não é comparável com a complexidade, com as necessidades e interesses dos humanos, pelo que o respeito pelos animais deverá vir sempre no fim das prioridades humanas. Em sua defesa, sempre que são acusados de não reconhecerem a igualdade entre o sofrimento e a vontade de preservação da integridade física entre humanos e animais, acusam os defensores dos animais de usarem argumentos antropomorfistas, ou seja, de transporem características dos humanos para os animais sem qualquer base científica e de bom-senso.

O sofrimento, apesar de ser uma experiência psicológica desagradável, não é um acidente de percurso na evolução das espécies, mas sim uma enorme vantagem evolutiva. Numa situação negativa que provoque uma experiência sensitiva, a entidade capaz de sofrer afasta-se da origem da dor e cria uma memorização, uma catalogação da origem dessa dor, para que numa situação futura semelhante consiga antecipar-se criando uma resposta mais adequada às pressões negativas externas de que é alvo.

É claro que é impossível compreendermos a totalidade da experiência de sofrimento noutros seres da mesma forma que o fazemos em nós mesmos, mas os avanços recentes na biologia, particularmente na etologia (ciência que estuda do comportamento animal e das bases do comportamento humano) e nas neurociências têm, de forma cada vez mais clara, desmistificado a ideia de que as emoções primárias, como interesse de auto-preservação da integridade física, interesse em manter-se livre de qualquer sofrimento físico e psicológico, são distintas entre humanos e restantes animais sencientes.

Para podermos avaliar a existência ou não de dor, devemos dividi-la em vários níveis: i) a nocicepção que é o conjunto de percepções iniciadas nos receptores mecânicos, térmicos e químicos do corpo que são enviadas para o cérebro e resultam numa resposta automática (por exemplo, dos músculos quando nos picamos numa agulha); ii) reacções emocionais negativas como o medo, a ansiedade, a frustração, a depressão ou o sofrimento; iii) mecanismos conscientes de avaliação, antecipação e respostas comportamentais à situação de dor.

Recorrendo ao conhecimento actual, podemos dizer que existem alguns animais que possuem apenas a primeira classe de dor, como as lesmas (Pastor et al. 1996) e insectos (Tracey et al. 2003), por possuírem nociceptores mas sem existir informação – até à data – que indique a presença de outros graus de percepção de dor. Outros animais, como as esponjas do mar ou vários tipos de parasitas microscópicos, não possuem sequer esta característica, uma vez que não possuem qualquer estrutura nervosa diferenciada. Por outro lado, é assumido que todos os vertebrados - peixes, répteis, aves e mamíferos (Sneddon et al. 2003) possuem os três níveis de dor, mesmo que, como no caso dos peixes, o processem de forma diferente da dos humanos (Chandroo et al. 2004).

Para começar os vertebrados possuem um sistema límbico, que é responsável pela origem das emoções básicas como o medo e a ansiedade, e que é essencial para a distinção entre uma situação agradável e uma desagradável. Possui ainda a função de memorização e aprendizagem das relações espaciais onde o animal vive. No caso dos peixes, é o telencéfalo que possui estas funções, uma vez que os peixes não possuem propriamente um sistema límbico diferenciado (Chandroo et al. 2004).
Para além disso, todos os vertebrados possuem uma medula espinal, responsável pela transmissão do sinal enviado pelos nociceptores para o cérebro, e ainda o próprio cérebro, responsável pela centralização e integração dos sinais recebidos, enviando em seguida os estímulos que correspondem à resposta ao estímulo. Um estudo sobre as estruturas do cérebro necessárias à existência de consciência concluiu que um telencéfalo diferenciado e integrado com outras estruturas era essencial, o que existe em todos os vertebrados, mesmo em peixes (Baars 2002).
Outro exemplo é-nos dado pelos estudos realizados por Sneddon et al (2003), que mostram que através do uso de morfina em trutas se obtém uma redução no comportamento de resposta à dor bem como uma alteração do ritmo cardíaco, em condições de estímulos nocivos. Uma vez que os peixes produzem substâncias igualmente capazes de modular a sua percepção de dor este grupo conclui que a relação entre os peixes e os estímulos negativos não são apenas reflexivas mas também emocionais.
Inúmeros estudos comportamentais já mostraram também que todos os vertebrados (incluindo peixes) conseguem aprender a evitar certas situações negativas, mesmo que estas sejam inicialmente positivas, o que significa que conseguem, conscientemente, construir de forma dinâmica projecções mentais de criação de expectativas (Overmier et al. 1990). Outros estudos comportamentais, desta vez em salmões, indicaram claramente a existência de stress psicológico ao medir os níveis de stress numa situação em que se esvaziava ao lentamente o tanque onde estes nadavam, sem nunca chegar a privar os peixes de oxigénio ou comida (Schreck et al. 1995).
Sem querer cansar o leitor com todas as evidências já estudadas, relembro mais uma situação que quase toda a gente já deve ter presenciado. Tal como nos humanos, muitos dos animais que são capazes de fazer um processamento complexo da dor mostram várias alterações comportamentais e psicológicas em situações de stress continuado: diminuição de apetite, inibição de comportamento social, libertação de hormonas de stress, alteração os seus padrões respiratórios e cardiovasculares e exibição movimentos e comportamentos repetitivos e estereotipados (Sneddon et al. 2003). Exemplo disto é o balançar ininterrupto dos elefantes e outras alterações de comportamento observáveis nos animais do circo por serem treinados e castigados até aos limites da sua exaustão física e psicológica.
Estes dados científicos mostram que os animais têm características, interesses e necessidades que vão bem mais longe do que a sua simples reacção ao ambiente.

A argumentação especista, para defender o seu lado, frequentemente coloca ainda cenários de dilema, para nos provar que nessas situações qualquer pessoa escolheria a vida de um ser humano, preterindo a de um animal. É o exemplo dos esquimós que têm de comer peixe, o exercicio da casa a arder em que só podemos salvar o bebé ou o coelho, ou o da ilha deserta onde só estamos lá nós e um carneiro – sem qualquer outro tipo de fonte de alimento.
Mas, embora estes dilemas obriguem qualquer “amigo dos animais” a dar uma resposta embaraçosa (ou dão a impressão que a sua teoria não é consistente ou dão uma resposta diferente daquela que qualquer humano daria), a maneira correcta de abordar estes cenários é que, independentemente daquilo que fizéssemos nestes cenários fictícios, a verdade é que no nosso dia-a-dia não existem verdadeiros dilemas. As nossas opções nunca se resumem apenas entre comer carne ou não comer nada, nem se limitam tão pouco a ficar em casa a olhar para as paredes ou ir a um circo ou a uma tourada para nos divertirmos.

Tendo tudo isto em conta e salientando que do ponto de vista ético não existe qualquer característica relevante nos animais não-humanos sencientes que nos leve a não considerar com igual interesse o seu sofrimento, então é imperativo dar os mesmos direitos básicos e essenciais a humanos e animais não-humanos, tais como o direito a existir livre de sofrimento e a não morrer. Daqui não se conclui que uma vaca deva votar ou um porco deva poder tirar a carta de condução. Estes animais não possuem estes interesses ou capacidades, ao contrário dos humanos.

Assim, a necessidade destes direitos resulta directamente da existência de senciência e não de uma argumentação jurídica (que é definida pelos humanos mas, pelo contrario, não define o comportamento e valores dos humanos, como alguns insistem).

A discriminação especista do sofrimento de uma espécie em relação ao de outra espécie é tão moralmente injustificável como o racismo, a xenofobia ou o sexismo. E tal como nos movimentos sociais que combateram estas discriminações, a luta pelos direitos dos animais tem também de se mostrar unida e plural. E mais importante ainda: não pode ficar indisponibilizada na gestão paternalista da negligência e desrespeito da sociedade pelos animais, mas antes focada na desconstrução das estruturas que vivem da exploração dos animais para acumularem capital e que investem esse capital na exploração de ainda mais animais. Esta luta faz-se primeiro com um boicote individual ao consumo de produtos que incluem sofrimento animal. E em segundo lugar com o trabalho e colaboração em grupos que fazem acções pelos direitos dos animais e pela escolha de estratégias arrojadas que optem pelo ataque inteligente e consequente - onde lhes doer mais - às verdadeiras indústrias de exploração de animais, como os criadores de animais (domésticos e para alimentação), os biotérios, os circos e zoos, ou as empresas tauromáquicas, sendo que a informação do público, através de bancas informativas, promoção de debates ou distribuição de panfletos é uma estratégia obrigatória.

Referências
Baars, B. J. (2002). "The conscious access hypothesis: origins and recent evidence." Trends in Cognitive Sciences 6(1): 47-52.

Chandroo, K. P., Duncan, I. J. H. and Moccia, R. D. (2004). "Can fish suffer?: perspectives on sentience, pain, fear and stress." Applied Animal Behaviour Science 86(3-4): 225-250.

Overmier, J. B. and Hollis, K. L. (1990). "Fish in the think tank: learning, memory and integrated behavior." Neurobiology of Comparative Cognition: 204-236.

Pastor, J., Soria, B. and Belmonte, C. (1996). "Properties of the nociceptive neurons of the leech segmental ganglion." Journal of Neurophysiology 75(6): 2268-2279.

Schreck, C. B., Jonsson, L., Feist, G. and Reno, P. (1995). "Conditioning improves performance of juvenile chinook salmon, Oncorhynchus tshawytscha, to transportation stress." Aquaculture 135(1-3): 99-110.

Sneddon, L. U., Braithwaite, V. A. and Gentle, M. J. (2003). "Do fishes have nociceptors? Evidence for the evolution of a vertebrate sensory system." Proceedings of the Royal Society B: Biological Sciences 270(1520): 1115-1121.

Tracey, W. D., Wilson, R. I., Laurent, G. and Benzer, S. (2003). "painless, a Drosophila Gene Essential for Nociception." Cell 113(2): 261-273.