quarta-feira, 6 de novembro de 2013

A serpentina em Vila Franca do Campo e em São Jorge


Em texto publicado, no passado dia 30 de Outubro, fiz referência à utilização das duas espécies que têm o nome comum de serpentina. Nesta edição do jornal, limitar-me-ei a escrever sobre a serpentina-mansa (Arum italicum), nomeadamente sobre o seu uso para o fabrico de uma farinha na Ribeira Seca de Vila Franca do Campo e nas Manadas, ilha de São Jorge. 
Na ilha de São Jorge, a serpentina é também designada por jarroca. De acordo com uma recolha efetuada há alguns anos pelo Centro de Jovens Naturalistas de São Jorge, junto da família Raposos da localidade das Manadas, a soca era apanhada nos meses de Abril e de Maio.
Depois de colhidas as socas eram lavadas e raspadas com uma faca para retirar a “pele” e a seguir eram moídas num moinho de carne. A polpa obtida era colocada num alguidar com água que era mudada durante três dias. Em seguida, era escorrida e colocada num tabuleiro até secar bem.
Para além de ser usada no fabrico de papas, a farinha de serpentina era tida, em São Jorge, como bom remédio para “a diarreia de pessoas e animais”.
Ainda de acordo com a mesma fonte, a farinha de serpentina também era usada para fazer goma, procedendo-se do seguinte modo: “Para tal, dissolve-se, em água fria, a farinha de jarroca, junta-se água a ferver e, enquanto morna, molha-se a roupa que se põe a secar. Ainda húmida passa-se o ferro até enxugar”.
Por último, na mesma nota que vimos referindo e que foi da autoria da senhora Maria José Silveira Azevedo, das Manadas, ficamos a saber que “em tempos de fome, o povo ia pelos “biscoitos” e matas procurar a soca de jarroca e a soca de feto para fazer farinha com que preparava uma massa que era cozida em bolos, no tijolo”.
Na Ribeira Seca de Vila Franca do Campo, na década de 70 do século passado, alguns homens, sobretudo camponeses sem terra, dedicavam-se à recolha da serpentina para compensar a falta de trabalho em alguns meses do ano. Lembro-me de ver alguns deles com sacas às costas e a deixá-las na casa da senhora Antonina “Trovoa” que morava na rua do Jogo.
Segundo Manuel Francisco, sobrinho de Antonina “Trovoa”, grande parte da farinha produzida na Ribeira Seca era vendida para Ribeira Grande, presumivelmente para Ezequiel Moreira da Silva que chegou a fazer a sua exportação para Lisboa.
Na altura, era muito fácil encontrá-la na Ribeira Seca ou nas localidades vizinhas, enquanto hoje a bibliografia menciona a sua abundância sobretudo na Ribeira Chã e nos Arrifes. Nas minhas caminhadas pela ilha de São Miguel, tenho-a encontrado um pouco por toda a parte, sendo muito fácil encontrá-la no Pico da Pedra.
Em conversa recente com Madalena Oliveira, moradora na rua da Cruz, na Ribeira Seca de Vila Franca do Campo, talvez a única pessoa que ainda mantém viva a tradição no concelho, confirmei tudo o que havia tomado conhecimento através de diversa bibliografia consultada, a qual não incluía o livro recentemente, e em boa hora, editado pela Junta de Freguesia da Ribeira Chã “Serpentina Uma Tradição de Raiz”, da autoria de Teresa Perdição.
Madalena Oliveira que, aprendeu com sua mãe, Maria dos Anjos Salema Carreiro, e sua avó, referiu que a recolha dos rizomas é feita antes de a plantas espigarem, sobretudo nos meses de Fevereiro e Março, mês em que obteve melhores resultados.
Como principais instrumentos usados na transformação dos rizomas em farinha, Madalena Oliveira mencionou um ralador adaptado para o efeito, uma peneira de milho, uma dorna de madeira e panas de plástico que substituíram os alguidares de barro. Longe vão os tempos, referidos por Silvano Pereira, em 1947, em que os rizomas eram desgastados “pela fricção contra uma pedra ou tábua de lavar”.
Numa altura em que está difícil a vida para quem vive do seu trabalho, a recuperação e valorização de conhecimentos e práticas antigas deve merecer o carinho de quem tem nas suas mãos a gestão da coisa pública, a começar pelas Juntas de Freguesia que são quem está em contato direto com as populações.
No passado, escreveu Silvano Pereira, o fabrico de farinha de serpentina constituiu “uma pequena indústria rural” que deu origem a “um comércio de certa importância”. Hoje, poderá ser um complemento ao rendimento de algumas famílias.
Teófilo Braga
(Correio dos Açores, nº 2940, 6 de Novembro de 2013, p.16)