A Felicidade de
todos os seres na sociedade futura
"Gonçalves
Correia dá-me vontade de rir pela sua ingenuidade e tolstoianismo - mas acaba
por se me impor. Este homem, que pretende realizar um sonho, dá a esse sonho
tudo o que ganha, e, apesar da guedelha, das considerações ingénuas, faz-me
pensar" (Raul Brandão)
Nas
minhas pesquisas em jornais antigos cheguei a uma reportagem publicada no
jornal “A Vila”, publicada no dia 7 de Julho de 1994, onde se dá conta da
presença em Vila Franca do Campo de um bisneto do escritor e pensador russo
Leão Tolstói que havia adquirido naquela vila uma propriedade onde passou a
residir durante alguns meses do ano.
Quase
em simultâneo, também dei conta que o projeto de sociedade e as ideias
defendidas pelo famoso escritor russo eram muito apreciados em todo o mundo nos
primeiros anos do século passado sobretudo por quem se reclamava do pensamento
libertário.
Em
São Miguel, a sua obra e pensamento foi difundida pelo jornal “Vida Nova”.
Naquele jornal, entre outros, João Anglin, que mais tarde foi reitor do Liceu
Nacional de Ponta Delgada. a ele dedicou pelo menos um texto.
No
continente português, Leão Tolstói foi referência para António Gonçalves
Correia, anarquista tolstoiniano que esteve em São Miguel, em 1910, e que
colaborou em quatro números do quinzenário micaelense “Vida Nova”.
Gonçalves
Correia (1886-1967) foi um anarquista português que nasceu em Castro Verde e
faleceu em Lisboa. Vegetariano, foi ensaísta e poeta, tendo criado a primeira
comunidade anarquista em Portugal, a Comuna da Luz, no Vale de Santiago, em
Odemira.
De
acordo com José Maria Carvalho Ferreira, defendia um tipo de anarquismo que era
“marginal” em relação às teorias e práticas (anarco-sindicalismo e anarco-comunismo)
que eram dominantes na época em que viveu.
As ideias de Gonçalves Correia ainda hoje mantêm
atualidade já que o mesmo não se limitava a defender uma melhor vida para os
humanos mas também para todos os animais. Mas, se assim pensava melhor o fazia.
Sobre o assunto Carvalho Ferreira escreveu: “Comprar passarinhos que estavam
prisioneiros nas gaiolas aos comerciantes que os vendiam nas feiras do Alentejo
para depois os libertar, ou desviar-se com a sua bicicleta dos caminhos
percorridos pelas formigas para não as matar, são exemplos paradigmáticos de como
nós devemos agir para se construir um equilíbrio ecossistémico entre todas as espécies
animais”.
Gonçalves Correia, que é para alguns considerado
um precursor da permacultura, numa palestra intitulada “A
Felicidade de todos os seres na sociedade futura”, proferida em Évora, em 1922, e que mais tarde
foi publicada em livro, dizia que o sofrimento, “obra maléfica do homem”, afeta
não só os seres humanos mas também os “irracionais” que “vieram ao mundo para
serem a ajuda fraternista de todos nós e nunca escravos tristes e submissos que
chocam a nossa sensibilidade”.
Para
ultrapassar a condição degradante em que viviam todos os seres vivos, que
segundo ele tinha como causa principal a “fórmula errada da propriedade privada
“, Gonçalves Correia defendia que se devia empregar “todo o esforço sincero e
ardente no sentido de criar a alegria nos seres humanos, pois que a alegria,
assim, se irá refletir até mesmo nos seres inferiores”.
E como
alcançar a felicidade?
Gonçalves
Correia acreditava que a felicidade, a alegria de viver, podia ser alcançada
“pela clarificação da inteligência, pela bondade, pela pureza de intenções,
pela sinceridade, pelo trabalho”. Mas não qualquer trabalho, apenas o trabalho
“consciente, metódico, que não seja a tirania do salariato, que não seja a
escravidão, o trabalho feito com alegria, com boa vontade, com consciência, o
trabalho que dimana da nossa vontade soberana!”
E o
que queriam os militantes que pensavam como Gonçalves Correia?
“ A
abundância de pão para todas as bocas, a fartura de luz, essa luz bendita do
amor, para todas as almas”.
Na
sociedade futura que é perfeitamente alcançável, segundo Gonçalves Correia, não
só será possível a felicidade para todos os homens, mas também para os
“irracionais”. A este propósito dizia ele: “ O próprio irracional não terá,
como o boi simpático e paciente, olhos mortiços o corpo cansado e esquelético.
Compreenderá o homem, enfim que ser rei dos animais não significa ter o direito
à sua tortura. Os próprios irracionais terão lugar no grande banquete da vida,
inundando-se a terra de pura, de generosa alegria”
Teófilo
Braga
(Correio
dos Açores, nº 2970, 11 de Dezembro de 2013, p.16)